Como mestra e especialista em violência psicológica contra a mulher, essa lógica do “pelo menos” é algo que identifico de forma recorrente nas minhas pacientes e clientes. O “pelo menos” é uma armadilha silenciosa, uma expressão que carrega o peso de expectativas tão distorcidas que acabam transformando as migalhas de um relacionamento em banquetes emocionais para muitas mulheres.
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“Pelo menos eu não estou sozinha”, “pelo menos ele não me bate”, “pelo menos ele fica em casa no final de semana”. Essas frases ecoam como um mantra nos relatos que escuto e, por muito tempo, eu também fui prisioneira dessa lógica. Eu mesma já aceitei menos do que merecia porque, assim como muitas mulheres, fui condicionada a acreditar que estar em um relacionamento ruim ainda era melhor do que não estar em nenhum.
Durante anos, carreguei a sensação de que precisava me contentar com o pouco, com o mínimo de afeto ou atenção, porque o simples fato de ter alguém ao meu lado parecia justificar a aceitação do inaceitável. Hoje, como profissional e como mulher, entendo que essa aceitação não é natural; é construída. É o resultado de um patriarcado que nos ensina a valorizar um relacionamento – qualquer relacionamento – como símbolo de sucesso e completude feminina.
Quando falamos de patriarcado, muitas pessoas pensam apenas em estruturas de poder externas, como a desigualdade no mercado de trabalho ou o controle econômico. Mas o patriarcado também se infiltra de forma mais sutil e perigosa: nas nossas crenças, no que consideramos aceitável, no que nos disseram ser “normal”.
Migalha não é banquete
A ideia de que é melhor ter um homem, mesmo que esse relacionamento seja insatisfatório, parte de uma visão que ainda mede o valor das mulheres pela capacidade de estarem em um relacionamento. Assim, a presença masculina – por mais mínima ou abusiva que seja – é vista como um “troféu” de validação.
A lógica do “pelo menos” é devastadora porque faz com que as mulheres aceitem migalhas, se acomodem a situações que as destroem pouco a pouco, porque isso é apresentado como o “preço” para não ficarem sozinhas ou “fracassarem” como mulheres. É uma mentalidade que alimenta a dependência emocional e que, muitas vezes, nos faz confundir afeto com tolerância e amor com submissão. Eu já aceitei o inaceitável porque, assim como tantas, fui ensinada a temer o vazio mais do que a violência silenciosa de um relacionamento tóxico.
Nos relatos que escuto, vejo essa dinâmica se repetir de diferentes maneiras: a mulher que perdoa a traição repetida do parceiro porque “pelo menos ele volta para casa”; a que aceita uma vida sem intimidade e sem respeito porque “pelo menos ele não me agride”; e a que tolera humilhações diárias porque “pelo menos ele não me deixou”. Todas essas falas têm um denominador comum: a crença de que estar acompanhada, mesmo em sofrimento, é melhor do que estar só.
O patriarcado nos convenceu de que merecemos tão pouco que acabamos nos agarrando a quase nada. Nos ensinou a transformar migalhas em banquetes e a rebaixar nosso valor para caber em espaços que nunca deveriam ter sido nossos.
Nós fomos condicionadas a pensar assim, mas podemos, e devemos, romper com esse ciclo. A transformação começa quando entendemos que não estamos pedindo demais ao exigir respeito, carinho e reciprocidade. Que não é capricho querer alguém que realmente nos valorize, e que o amor nunca deveria ser medido pelo “pelo menos”.
Aceitar migalhas não é uma falha individual, mas um sintoma de uma sociedade que nos ensinou a nos contentar com o mínimo. Romper com essa lógica exige reconhecer que o que precisamos não é “pelo menos” estar em um relacionamento, mas sim estar em um relacionamento que acrescente, que respeite, que compartilhe. E, mais importante ainda, exige que compreender que a nossa felicidade e nosso valor não dependem de ter alguém ao lado, mas sim de nos sabermos inteiras, completas e dignas de tudo o que merecemos, com ou sem um relacionamento.
Eu também já estive nessa posição, e é por isso que hoje falo com tanta convicção: aceitar menos é aceitar ser diminuída. E nenhuma de nós merece migalhas.
*Mayra Cardozo é mentora de Mulheres e Advogada, especialista em gênero e sócia do escritório Martins Cardozo Advogados Associados. Idealizadora do método alma livre criado para auxiliar mulheres a saírem de relacionamentos tóxicos e abusivos.